O viés do especialista
Quanto maior o nível de especialização, maior a tendência ao otimismo irrealista
Essa é a newsletter mensal aberta para todos os assinantes da Comunidade Moovers. Escrita pela futurista e Diretora Executiva da Moovers Monica Magalhaes, que compartilha insigths, reflexões e análise de tendências em tecnologias emergentes.
Hello moovers! Monica Magalhaes por aqui 👋🏼
“Só sei que nada sei” - Sócrates via o conhecimento verdadeiro como a consciência da ignorância, o ato de permanecer aberto e curioso diante do mundo.
Como já contei aqui, estou no processo de escrever um livro e tem sido uma experiência interessante. É um mergulho profundo em si mesmo e, ao mesmo tempo, você também mergulha na essência de outros que te ensinam.
Minha descoberta recente é um padrão entre especialistas do futuro, algo que passei a chamar de o viés do especialista.
Ao investigar autores e pesquisas de foresight dos anos 1970, percebi um padrão: quanto maior o nível de especialização, maior a tendência ao otimismo irrealista. Os especialistas não são observadores neutros, mas defensores das suas próprias causas. E talvez por isso superestimem o ritmo e o impacto das inovações que estudam. E claro, me vi nesse espelho.
É um tipo de viés, uma miopia otimista que todo especialista carrega. Uma cegueira sofisticada, disfarçada de lucidez. O excesso de conhecimento técnico cria tanta confiança que a pessoa perde a capacidade de duvidar. Enxerga o detalhe com nitidez, mas perde o horizonte que é tão importante no futurismo.
O viés do especialista
Em tempos de disrupção acelerada, essa miopia é perigosa. Quando a autoridade do especialista se confunde com o sentimento de inevitabilidade, o foresight perde seu propósito, deixa de ser um exercício de imaginação estratégica e vira uma defesa apaixonada das suas crenças.
A frase de Sócrates faz muito sentido no universo de especialistas em futuro, mas numa versão: Quanto mais sabemos, menos imaginamos.
Acaba que o especialista não fala sobre o futuro de fora, ele fala sobre o que está dentro dele. E esse é justamente o problema. Quem dedica uma vida inteira a um tema tende a se apaixonar por ele. É natural. O pesquisador vira defensor, e a linha entre o que ele observa e o que ele deseja ver fica cada vez mais tênue.
Esse fenômeno fica ainda mais complexo no nosso momento tecnológico atual quando temos milhares de especialistas técnicos, profundos conhecedores de IA, blockchain, computação quântica. Quanto mais profundo o domínio técnico, mais forte a crença de que sua tecnologia será transformadora, isso produz o viés de inevitabilidade tecnológica: a convicção de que adoção massiva é questão de tempo, ignorando dimensões humanas, culturais e políticas que determinam se uma tecnologia vai decolar. O resultado é um mercado de futuro tecnológico inflacionado (influencia inclusive no valuation de empresas)
O especialista acredita que o futuro está logo ali. Mas o que ele está realmente vendo é o reflexo do próprio desejo. O perigo não está em errar o cenário, está em não perceber o próprio viés. A imaginação se fecha, o debate empobrece, e o futuro vira uma aposta cega.
Durante muito tempo eu acreditei que prever o futuro era uma questão de método. Bastava reunir dados, aplicar modelos, fazer projeções. Até que percebi que essa crença também moldou futuristas no passado e a precisão desses acertos vira sinônimo de inteligência depois. Mas o futuro não é uma linha reta, é um campo de forças em constante movimento. E quanto mais tentamos controlá-lo por meio da técnica, mais ele escapa.
Peter Schwartz, no clássico The Art of the Long View, dizia que o valor de pensar futuros não está em acertar o cenário final, mas em alargar o horizonte de possibilidades. Mesmo assim, continuamos presos a uma lógica de acerto e erro, como se antecipar fosse adivinhar.
O especialista, treinado para ser preciso, sofre com isso. Ele carrega uma mentalidade científica que o faz buscar certezas num território feito de incerteza. E quando acerta, se sente validado, quando erra, culpa as circunstâncias.
Mas talvez o problema seja outro. Talvez o erro não esteja no modelo, mas na autoridade que damos a quem diz saber. Porque o futuro é, por natureza, um espaço coletivo, e quando o monopolizamos nas mãos de poucos “sábios”, matamos a imaginação plural que o sustenta.
Tentar prever o futuro é buscado como um conforto psicológico. Ela nos protege do caos. Mas o preço é alto: quando o especialista acredita demais na própria fórmula.
O foresight precisa da diversidade cognitiva
Nenhum olhar enxerga o futuro sozinho. O erro do especialista é achar que profundidade substitui amplitude, como se conhecer muito sobre uma parte do mundo bastasse para compreender o todo.
Mas o futuro é sistêmico, não segmentado e minha proposta é misturar olhares. Combinar técnicos e gestores, cientistas e artistas, jovens e veteranos. Porque a diversidade mais do que nunca é necessária porque é estratégica.
Cada pessoa traz um mapa distinto de mundo, e é na sobreposição desses mapas que surgem os contornos de algo novo.
O foresight, quando praticado em grupo homogêneo, vira eco. As ideias circulam em espaços fechados, confirmando umas às outras. Mas o futuro se abre quando há fricção, quando uma visão técnica encontra uma sensibilidade cultural. Ela força a atualização do pensamento, obriga a duvidar, expõe o que ficou invisível.
O futuro precisa menos de especialistas e mais de intérpretes de mundos. Gente capaz de traduzir linguagens, conectar campos, construir pontes entre o que sabemos e o que ainda não conseguimos imaginar.
A nova expertise não é acumular respostas, é aprimorar perguntas. Porque o mundo não precisa de mais certezas precisa de mais consciência sobre as coisas que escolhe manter.
E pensando bem, talvez o futuro peça gente e mais humilde. A humildade, aqui, não tem nada de modesta, é uma forma de inteligência. É a consciência de que o conhecimento é sempre um fragmento, e que imaginar o amanhã exige aceitar que não controlamos tudo o que está por vir.
O paradoxo do especialista é acreditar que saber demais o protege do erro. Mas é justamente o contrário: quanto mais sabemos, mais precisamos duvidar.
Pensei aqui num antídoto para a “miopia otimista” que pode ser a humildade epistêmica (achei aqui um lugar pra usar essa palavra que está no top trend): a coragem de admitir que o horizonte vai escapar você querendo ou não, e mesmo assim vale continuar olhando, vale continuar curioso, mesmo depois de você achar que já entendeu tudo ;)
let’s keep moving,
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Gostei muito de seu texto, especialmente ao reconhecer que não há neutralidade. Assim como não há imparcialidade. Todos nós partimos de um ponto de vista, de uma representação de mundo - dada por nossa cultura, pelo senso comum, por nossos mitos. Entendo que este é o princípio para que se produza sempre uma boa análise. Parabéns!
Muito bom o texto e também o conteúdo. Lendo isso me lembrei das ideias de Nassim Taleb no livro “O cisne negro”.